A austeridade fiscal e a década da desgraça
30/08/2017
Carta Capital
por Carlos Drummond
O aumento das metas de déficit fiscal anunciado pelo governo em 15 de agosto, de 139 bilhões para 159 bilhões de reais neste ano e de 129 bilhões para 159 bilhões em 2018, mostra o fracasso completo da austeridade radical imposta ao País dois anos e meio atrás.
Quando o então ministro da Fazenda Joaquim Levy anunciou o pacote de cortes de gastos públicos, disse que o aperto duraria alguns meses e era essencial para a recuperação da economia.
Em 2014, o Produto Interno Bruto cresceu só 0,5%, mas a situação estava longe de ser desesperadora, como afirmavam oponentes do governo. Hoje, após a queda de 7,4% do PIB acumulada em 2015 e 2016, e diante da precariedade das projeções de crescimento para este ano e o próximo, aquele meio por cento parece uma miragem.“Os economistas do mainstream pressionaram pelo ajuste que veio, diziam que estava tudo um desastre. Não estava. A economia desacelerava, mas quem produziu o desastre foram eles, com as recomendações que fizeram. E agora dizem que não tem importância aumentar o déficit, pois o problema são as regras. É patético, você ouve o ministro da Fazendae percebe que ele não tem noção do que está acontecendo. Ele está no meio da tormenta e parece completamente perdido”, dispara o economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Os catastrofistas de 2014 adotavam o mesmo manual da supremacia do mercado seguido por aqueles que conduziram o mundo à crise de 2008, que neste mês completa dez anos com grandes incertezas ainda no horizonte.
Enquanto os Estados Unidos e a Europa crescem em ritmo insatisfatório, o Brasil prossegue no caos econômico, político e social, com 13,5 milhões de desempregados.
Três anos consecutivos de recessão na indústria de transformação, de 2014 a 2016, provocaram um colapso do investimento produtivo e reduziram a rentabilidade das grandes empresas que operam no Brasil, mostra o levantamento publicado na segunda-feira 14 pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
A entidade tabulou informações contábeis de 296 empresas não financeiras de 41 setores para apurar a rentabilidade, o endividamento e a composição dos ativos. A combinação de recessão e juros altos provocou uma drenagem de recursos.
“O setor produtivo transferiu, por meio do pagamento de juros e encargos das dívidas para o setor financeiro, algo da ordem de 13,9% do PIB nesses últimos sete anos”, contabilizaram os autores do estudo. Os sinais positivos são localizados e “ainda há um longo caminho a ser percorrido para a retomada sustentada da economia brasileira”.
As medidas econômicas do governo costumam ser apresentadas como estritamente técnicas, portanto, imprescindíveis, e os anúncios de revisão da meta de déficit seguem essa regra. Não se trata, entretanto, da tomada de decisões a partir de critérios científicos, chama atenção Belluzzo.
“Isso é uma ilusão. A política econômica envolve escolhas políticas e julgamentos políticos. Essa separação que os economistas fazem é uma fraude. Porque o que aconteceu no final do governo Dilma – com todos os erros, eu fiz as críticas que tinham de ser feitas tanto ao Lula quanto à Dilma – foi que predominou nas relações de poder a visão de que era preciso incriminar os governos de ambos. Isso acabou determinando uma escolha desastrosa de como lidar com a situação do fim de 2014. A perda da eleição marcou profundamente o comportamento da oposição, assim como o ressentimento e o ódio em relação ao que eles achavam que era uma política bolivariana – apesar de o Brasil não ter nada a ver com a Venezuela, nem com bolivarianismo nenhum – e isso os levou a tomar a decisão na direção contrária, de reforçar a crise.”
A responsabilidade específica dos profissionais da economia não deve ser minimizada e o rumo escolhido mostra suas profundas limitações. Resultado: os aprendizes de feiticeiro depararam-se com uma economia em desaceleração e com problemas de desequilíbrios acumulados.
A solução pretendida por essa turma equivale a pegar um pugilista que saiu grogue do primeiro round e, em vez de lhe proporcionar algum alívio, deram-lhe mais um murro na cabeça.
Há três anos a economia despenca. Mas os aprendizes entreolham-se surpresos, porque o déficit primário não vai ser de 139 bilhões de reais, e sim de 159 bilhões. No debate contemporâneo europeu e americano, as investigações mais recentes procuram mostrar que as hipóteses que sustentaram o ajuste brasileiro estão marcadas por graves enganos metodológicos a respeito do funcionamento da economia. É óbvio que o agravamento da recessão levou à queda da receita fiscal.
Nada de significativo foi feito, nem no Brasil nem no resto do mundo, para melhorar as condições econômicas e aliviar o flagelo social dos últimos dez anos. Isso se explica, em primeiro lugar, pela ideologia de fundamentalismo do mercado, analisa Anatole Kaletsky, economista-chefe e vice-presidente da consultoria Gavekal Dragonomics e presidente do Institute for New Economic Thinking.
“Desde o início da década de 1980, a política é dominada pelo dogma de que os mercados estão sempre certos e a intervenção econômica do governo quase sempre está errada. Essa doutrina assumiu o comando a partir da contrarrevolução monetarista contra a economia keynesiana que resultou das crises inflacionárias da década de 1970. Isso alimentou a revolução política de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que, por sua vez, ajudou a impulsionar o crescimento por 25 anos, a partir de 1982”, analisa Kaletsky.
O fundamentalismo do mercado inspirava-se, entretanto, nessas perigosas falácias intelectuais: 1. Os mercados financeiros são sempre racionais e eficientes. 2. Os bancos centrais precisam só estabelecer metas de inflação e não se preocupar com a estabilidade financeira e o desemprego.
3. O único papel legítimo da política fiscal é equilibrar os orçamentos, não estabilizar o crescimento econômico. “Mesmo quando essas falácias explodiram a economia de mercado depois de 2007, a política fundamentalista sobreviveu, impedindo uma resposta adequada à crise”, sublinha o economista.
Esse efeito, diz, não deveria ser surpreendente, pois o fundamentalismo de mercado não é apenas uma moda de pensamento econômico, mas uma manifestação, a partir da década de 1970, de poderosos interesses políticos.
A evidência supostamente científica de que a intervenção econômica do governo é quase sempre contraproducente legitima uma enorme mudança na distribuição de riqueza, desde trabalhadores industriais até proprietários e administradores do capital financeiro e de interesses comerciais.
A construção econômica a partir dessas concepções é necessariamente instável, explica Kaletsky: “Para ter sucesso, as políticas monetárias, fiscais e estruturais devem ser implementadas em conjunto, em uma ordem lógica e mutuamente reforçadora. Mas, se o fundamentalismo do mercado bloqueia as políticas macroeconômicas expansionistas e evita a tributação redistributiva e a despesa pública, a resistência à desregulamentação do mercado de trabalho e à reforma das pensões e aposentadorias deve se intensificar”.
O estrago provocado pelo fundamentalismo do mercado é descomunal, mostra Yilmaz Akyüz, professor de Universidades da Turquia e da Europa e ex-diretor da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
O especialista, que também é consultor econômico especial do South Centre, think tank dos países em desenvolvimento, faz um balanço da Grande Recessão em uma passagem do seu livro Playing With Fire: Deepened Financial Integration and Changing Vulnerabilities of the Global South.
As crises nos Estados Unidos e na Europa, diz, foram provocadas pela expansão rápida do crédito e pelas bolhas de imóveis e de consumo movidas a endividamento. Sua solução exigia, portanto, a redução da dívida em relação à renda.
Em vez disso, a política monetária superfrouxa adotada resultou em uma acumulação de dívidas, nos dois hemisférios, de mais de 50 trilhões de dólares desde 2008, superando o crescimento da renda nominal mundial.
Nos EUA, a proporção da dívida privada somada à dívida pública em relação ao PIB aumentou 40%, enquanto mais do que duplicou na periferia da Europa. O crescimento da dívida das famílias nas economias avançadas é moderado em relação àquela existente nos sete anos anteriores ao início da crise, mas a dívida corporativa sofreu uma aceleração significativa.
Houve também um rápido aumento na dívida corporativa nos países emergentes e uma parte importante dela é em dólares. No fim de 2015, a dívida total não financeira era de 265% do PIB nas economias avançadas e de 185% nos países emergentes e em desenvolvimento, 35 pontos porcentuais acima dos montantes de 2007, criando preocupações de que grande parte pode se tornar impagável na próxima desaceleração da economia.
Nos países emergentes, a situação é mais grave. A liberação crescente, nos últimos anos, da aquisição de empresas, jazidas, concessões, participações, aplicações financeiras e investimentos por não residentes e da compra no exterior, por residentes, desses mesmos tipos de ativos aumentou a integração das economias periféricas ao sistema financeiro mundial e a sua vulnerabilidade às crises globais, analisa Akyüz.
A situação descrita borra as fronteiras entre endividamento interno e endividamento externo e dificulta a identificação da vulnerabilidade dos países, alerta o economista.
Dinamizar a economia não será fácil. Nem as inúmeras bolhas financeiras que deram suporte precário ao crescimento desde os anos 1980 nem excedentes de exportação constituem soluções sustentáveis para recuperar a demanda nas principais economias avançadas e na China, analisa Akyüz.
Tampouco é possível estimular o investimento privado produtivo para preencher o hiato da demanda através de ajustes de taxas de juro.
“A solução encontra-se na reversão do declínio secular na parcela do trabalho em renda, de modo a reativar um crescimento liderado pelos salários e pelo investimento público. Os governantes não têm munição para lutar contra outra desaceleração, a menos que abandonem a austeridade fiscal e deem o dinheiro a quem o gastaria em vez de especular.”
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